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yoga

 

 

tudo se obtém pela disciplina

nada se obtém pela disciplina

 

marguerite yourcenar

 

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o espaço, que ninguém pode desenhar, porque é imperceptível como meio e origem dos nossos gestos e da nossa permanente habitação, é o fundamento absoluto do nosso ser temporal e da nossa continuidade sempre recomeçada

 

antónio ramos rosa

 

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evocar o espaço vazio, intemporal, no nosso próprio corpo, em todas as direcções

no intervalo entre a expiração e a inspiração, presenciar a vacuidade da mente, livre de dualidade, em fusão com a sua fonte original

a posição sem suporte que nesse ponto se revela é o verdadeiro asana, por entrega do corpo, esse receptáculo do grande vazio, em oferenda ao fogo sacrificial: elementos, órgãos, objectos, a própria mente compreendida entre eles, eis a verdadeira oblação, acolhida na taça ritual da consciência

vijnana bhairava tantra

(trad. e adap. nc)

 

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sadhana

 

vivemos numa época tremendamente mecanicista, habituados a encontrar explicações para tudo

 

por vezes chega a ficar a impressão de que o grande fulcro da vida humana é compreender como o mundo funciona

 

vem-me à memória a chamada de atenção de r. w. emerson para os malefícios que derivam de nos tornarmos demasiado entendidos sobre o funcionamento interno do corpo

 

a ânsia da ciência na exploração do céu retirou-lhe parte considerável da magia e fantasia que outrora nos era possível encontrar nele

 

neste contexto racionalista e mecanicista a prática espiritual - sadhana - chega a parecer deslocada

 

hildegard von bingen, meister eckhart, s. joão da cruz, sta. teresa d'ávila, devotaram-se à vida interior, a essa zona da experiência religiosa em que o mistério é abordado cuidadosamente, vagarosamente e, muitas vezes, dolorosamente

 

propunham a receptividade mais do que a actividade e reconheciam a importância da ligação entre o modo de vida quotidiano e a preparação para a contemplação

 

o místico pode parecer absorvido em si próprio mas não é forçoso que assim seja: a vida interior, tal como a vida mundana, pode abrir para um universo de mistério onde o sentido comum do eu se esbate

 

a vida interior não é sinónimo de vida pessoal: já não sou eu que parto em busca do silêncio, é a própria quietude que  se apodera de mim, conduzindo-me

 

a questão não é, portanto, progredir por via do refinamento do controlo mas render-me ao silêncio subjacente a tudo o que me envolve

 

em linguagem psicológica, poderíamos chamar a isto um elemento de impessoalidade na contemplação

 

o nosso mundo está repleto de personalização, isto é, de estratégias de análise, entendimento e manipulação de si próprio e da realidade

 

em contraponto, william blake afirmava que o corpo era a alma apreendida pelos sentidos

 

o corpo não precisa da mente para se justificar, não é separado dela e, como tal, não lhe é subordinado

 

não é desprovido de vida nem de significado, não carece de explicações

 

neste sentido, quando adoptamos gestos e posturas, oramos - nada mais tem que ser acrescentado, nem entendido, nem justificado

 

thomas moore

(trad. e adapt. nc)

 

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the body is my temple

 

asana are my prayers

 

b.k.s. iyengar

 

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corporalidade livre

 

duma maneira geral, conduzidos pela imagem de um eu autónomo e delimitado, servimo-nos dos objectos na busca de segurança e da preservação dessa identidade imaginária: utilizamos o nosso automóvel, o nosso cão, o nosso marido, o nosso apartamento, os nossos filhos, a nossa profissão, o nosso corpo, para provarmos qualquer coisa, para provarmos a nós próprios e aos outros que existimos

 

utilizamos, pois, o corpo, como um objecto: desenvolvemos esforços para que ele se pareça com isto ou com aquilo, treinamo-lo, procuramos mantê-lo de boa saúde, alimentá-lo desta ou daquela maneira, para que ele se assemelhe à ideia que fabricámos do que é a nossa identidade, impondo ao nosso corpo o que adivinhamos que nos permitirá um melhor reconhecimento pelo meio ambiente que nos rodeia

 

desembocamos, dessa forma, na vivência de um corpo instrumental, um corpo explorado, escravizado

 

quando entendemos profundamente que não temos que nos pôr à venda, que não há necessidade de sermos certificados pelo exterior, quando começamos a pressentir essa autonomia afectiva, olhamos para o nosso cão, para o nosso automóvel, para o nosso marido, para a nossa mulher, para o nosso tapete, para o nosso corpo e vemos outra coisa, já não vemos um material para inscrever no nosso cartão de visita, já não vemos uma marca para nos comercializarmos, a nós e aos outros, vemos uma imensidão, vemos a vida, vemos significando que escutamos

 

aí vamos verdadeiramente ver o cão e o que é que será mais funcional para ele, o mesmo irá acontecer em relação ao tapete, ao marido ou ao automóvel, não para impressionar o vizinho quando ele aparecer mas por evidência do que lhes é mais adequado

 

nesse momento, ao ser escutado, o corpo, tal como os outros objectos, assume naturalmente o seu lugar, permitindo-nos descobrir as nossas capacidades, talentos, facilidades ou dificuldades, e passamos a poder deixar esta sensibilidade exprimir-se vivamente, não em função do que gostaríamos, não em função do que isso nos possa trazer, mas de acordo, simplesmente, com o que se apresenta a cada instante

 

esta forma de estar presente ao corpo torna-se por vezes surpreendente e incompreensível para o exterior, visto que deixamos de escutar por sobrevivência, por comércio, escutamos por amor

 

apresentam-se, então, outras redes de frequência, outras redes de escuta, de carácter muito mais íntimo, muito mais profundas do que a superficialidade dos conceitos de conforto ou de desconforto, de saúde ou de doença, funcionalidade ou disfuncionalidade, frequências que não são afectadas por aquelas, são, antes, essas polaridades que participam delas, mas naturalmente: a dor e a doença não têm que ser um erro, a saúde e o conforto não são forçosamente um bom sinal, elas são o que são

 

apenas numa mente sem opiniões podemos entender de forma não conceptual o que são consonâncias e dissonâncias, do ponto de vista comum, a sua compreensão torna-se redutora

 

ocorre uma forma de aprofundamento, o corpo apresenta-se como um mistério: como o nosso cão, como o nosso tapete, como o momento em que engolimos um trago de água - o que é que pode haver de mais extraordinário que beber um gole de água ou poder inspirar, ou sentir um dedo da nossa própria mão, ou contemplar uma folha que é levada pelo vento?

 

a profundidade e a plenitude estão em tudo e, quando deixo de tentar saber e compreender, elas vão-se revelando duma forma cada vez mais vasta e menos conceptual

 

é o verdadeiro início duma exploração íntima em que nos surge também a evidência de que sentir isolamento é viver à superfície dos seres e das coisas, é viver no pensamento

 

quando começamos realmente a sentir o corpo, torna-se impossível sequer conceber o isolamento, é impensável: não há senão contacto, o corpo não é outra coisa senão contacto, o tocar é constante, estamos permanentemente imersos na experiência de tocar, é aí que encontramos o afecto, a conexão profunda, que não são uma ligação psicológica, são um vínculo que se faz pelo coração, incompreensível para o intelecto

 

num corpo vivo, numa sensibilidade desperta, podemos ter um contacto profundo com alguém que nem sequer está objectivamente presente, um contacto eminentemente físico, mas não o físico tal como a mente o concebe

 

aquele que o vive sente esse laço como tal, mas trata-se de uma ligação que não precisa de ligar, apenas re-une, é uma corrente de energia como aquela que relaciona certas árvores, certos animais, certos espaços, certos países, certas culturas, não são laços imaginários, são ressonâncias

 

deixamos que nos cheguem todas essas formas de reverberação que não pertencem sequer ao passado, o passado apenas existe enquanto conceito, a ressonância passa-se no presente: quando, por exemplo, tomamos contacto com uma espada que foi utilizada em rituais específicos, eles encontram-se presentes, não são passados

 

antes de encontrarmos uma espada ritual, antes de encontrarmos um pai ou um filho, antes de encontrarmos um marido ou um amante, um amigo ou um inimigo, a linha já se encontra lá

 

numa subordinação a estas linhas, o encontro dá-se, no instante, naturalmente, mas o que está lá essencialmente é a linha subjacente a ele, pelo que, a exteriorização não tem que acarretar, sequer, um dispêndio de energia 

 

os seres humanos e os objectos fazem parte duma imensa cartografia que tem as suas regras

 

da mesma forma, a prática das posturas de yoga constitui-se como celebração de um regresso a formas fundamentais arquetípicas, não como atingimento ou conquista de configurações aleatórias, alheias ao corpo

 

a postura de yoga pré-existe no espaço, o corpo físico escoa, até se fundir nela

 

não há nada que nos seja verdadeiramente exterior, surge uma ligeireza, não há nada que nos seja alheio, tudo o que encontramos é a nossa intimidade

 

eric baret

(trad. e adapt. nc)

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